Raízes

Alexis ~ Myo
18 min readJun 23, 2022

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Este conto foi escrito em conjunto com Diogo Stone; Os acontecimentos presentes são de meados do episódio “Voz de prisão”, da campanha Maldição de Strahd na Twitch do Queers&Dragons, e antes do conto Críticas.
Recomendada a leitura deste conto ouvindo Two Ghosts - Harry Styles e Lost boys life - Computer Games.

Após os eventos caóticos na praça de Vallaki, Ukkor e Yoru aproveitaram que a taverna onde estavam hospedados tinha um excelente espaço para se banharem. Estavam cobertos de sujeira e o cheiro de legumes apodrecidos era horrível.

Depois de uma breve conversa sobre as cicatrizes de Ukkor, um silêncio se instalou entre eles. Uma quietude confortável onde apenas o som da água se fazia presente. O vulpino lavava as costas e a cabeça de Ukkor com cuidado, como alguém que já havia feito aquilo muitas vezes — só não nele.

“Merda, seu idiota” era tudo que o meio-orc conseguia pensar de si enquanto o amigo o ajudava a se lavar. Mais uma vez sua ira havia colocado a si — e aos outros — em apuros. Sempre fora assim. Em casa. Nas ruas. Nas florestas. Ukkor nem sabia do que tinha raiva; ou o porquê tinha raiva. Sentia como se carregasse uma rocha sobre os ombros todos os dias, o dia todo e — a qualquer momento — se ele não suportasse, ela o esmagaria. Ou pior, cairia para o lado e machucaria alguém que ele ama.

O vulpino continuou o trabalho por mais alguns minutos. Quando suas mãos chegaram até a linha do pescoço, notou a região machucada pela berlinda onde o meio-orc estava preso. Soltou um longo suspiro, passando delicadamente os dedos pela escoriação, como se pedisse desculpas.

— Sabe, Ukkor, eu não concordo com você — quebrou o silêncio com um tom baixo e sereno, dando um tempo para si mesmo raciocinar. — Não precisamos de cicatrizes pra lembrarmos o que passamos, nossas lições e o que aprendemos. Eu aprendi muito com nosso tempo na floresta e foi o tempo que menos criei novas cicatrizes. Apesar de ter te deixado uma.

A voz de Yoru rompendo o silêncio e chamando por seu nome, trouxe a atenção de Ukkor de volta. Ouviu o som da água e percebeu o que acontecia de verdade; havia se distraído de novo. Sempre foi difícil manter-se focado no que queria. Sentia os dedos finos e delicados do vulpino checando as escoriações e imaginava se ele estaria sorrindo triste ou mantendo a expressão estóica de sempre.

— Não acho que precisemos de cicatrizes, mas a violência sempre se fez presente comigo. Não só ao meu redor, mas dentro de mim também — falava baixo, confidencializando a conversa apenas entre eles. — O tempo que passamos na mata foi bom, foi um tempo de companheirismo. Então você sumiu, e Ralakas também.

O brutamontes estremeceu quando as mãos pequenas de Yoru passaram por uma cicatriz mais sensível em suas costas.

— Mas ter ficado sozinho foi bom, não arrumei mais problemas pra vocês — comentou triste enquanto começava a esfregar o próprio pescoço com afinco. O odor de leguminosas podres era horrível.

— Você nunca me arrumou problemas — Yoru respondeu rápido demais, quase atravessando as palavras do amigo. Deu um leve pigarro e continuou. — Na verdade, eu que te arrumava problemas, lembra? Roubando brinquedos dos outros, escondendo seus pertences quando entediado, roubando comida “sem querer” de algum caçador próximo na floresta…

Continuou ditando acontecimentos passados enquanto impedia Ukkor de esfregar a área machucada, fazendo ele mesmo o trabalho, mas com delicadeza para não ferir mais a pele. Ficou um momento em silêncio, pensativo. Sua cabeça nas últimas vinte e quatro horas era um turbilhão, ter a clareza de uma mente humana era algo muito novo para Yoru. Ainda não sabia como organizar os pensamentos. Era bizarro o novo jeito de pensar, ou o jeito de falar; até mesmo escolher o que falar.

— Você não é o único que fez besteira. Eu cheguei num estranho em uma cidade que não conheço pra perguntar sobre uma boneca, sendo que era só eu pegar a que eu já tenho e seguir o cheiro até ele. Mas não, a raposa enxerida tiiinha que se meter. — Revirou os olhos ao fim enquanto debocha de si mesmo, dando uma leve risadinha no final. — Era por isso que eu não queria que você estivesse ali, levando a culpa. Não faz sentido pra mim, você de certa forma estava me defendendo? Eu acho? Estou tentando entender valores humanos e sentimentos ainda. É algo muito… esquisito.

Concluiu com um ruidoso suspiro, voltando sua atenção à tarefa que fazia. Para Ukkor, era difícil pensar que a pequena raposa, fujona e mordedora, estava ali cuidando de um ferimento que só existia pois o meio-orc fora estúpido demais. Mesmo que Yoru tentasse assumir a culpa, balançava a cabeça negando; apesar de achar graça da maneira que ele falava.

— Te defendendo? Sim, estava. Não que você precisasse, é que me irrita quando mexem com — sua voz trava por uns instantes — , com quem eu me importo.

— E, sabe, agora você não conversa sem resposta com uma raposa. Agora eu realmente posso te responder e te ajudar. Eu não vejo raiva em você. Eu vejo dor e acho que o que chamam de culpa. Me dá um sentimento inquieto te ver assim… e pelo que entendi, humanos se ajudam a melhorar, não? A serem felizes… ao menos de certa forma foi o que a Porta me mostrou. — franziu o cenho sem perceber, perdendo-se novamente na confusão de pensamentos. — E, bom, não é como se eu simplesmente tivesse ido embora… sabe, Ukkor, eu não entendo muito das coisas que fazia antes, e muito menos agora. Mas eu roubei sua pelúcia e… não sei, acho que fiquei com vergonha?

Sua voz foi morrendo aos poucos enquanto suas bochechas enrubesciam, fazendo o jovem vulpino agradecer pelo companheiro estar de costas — apesar de não saber o por que de estar agradecendo por isso; A voz de Yoru ainda soava nova aos ouvidos de Ukkor. Não exatamente o tom, mas a eloquência. O vulpino mencionar as peripécias que fazia a tempos atrás só fortalecia aquele sentimento de que, talvez, teriam podido se ajudar melhor. Sobrevivido melhor.

O mais velho riu quando Yoru concluiu que ficara envergonhado por roubar sua pelúcia e virou o corpo para encarar o vulpino que, para sua surpresa, tinha o rosto corado. Ukkor levou a mão até o rosto do mais jovem e removeu uma marca de sujeira, questionando-se se ele sempre fora assim bonito e nunca tinha percebido.

— Partiu por vergonha? É, vergonha é algo que nos leva a tomar decisões das quais podemos nos arrepender — engoliu em seco antes de dar as costas ao vulpino mais uma vez, apesar de preferir olhá-lo por algum motivo ainda desconhecido. — E eu nunca fiquei sem resposta sua, Miku. Você sempre falou muito com suas ações, não era preciso palavras para perceber o que você queria dizer. Pessoas se ajudam, sim, e você têm me ajudado desde aquela época. Mais humano que muita gente que eu já conheci, mais até do que eu.

Yoru se surpreendeu com o movimento do outro na banheira; então veio a sua declaração de que era importante, seguido da limpeza de seu rosto, quase como um carinho. Sua cabeça estava tão sobrecarregada de sentimentos e sensações que havia travado numa expressão de surpresa com as bochechas enrubescidas.

Entender sentimentos é algo difícil, e o vulpino só os tinha há menos de um dia e já era bombardeado por todos ao mesmo tempo. Era como se tudo e nada valesse a pena. Ao mesmo tempo, parecia que tudo que importava estava ali na sua frente; onde quase sempre estaria, se não tivesse fugido.

As orelhas de Yoru, que haviam se levantado na surpresa, baixaram lentamente ao constatar seus erros. Uma expressão de tristeza tomou seu rosto e Yoru se perguntava quando começou a conseguir transparecer tanto suas emoções. Parecia que só conseguia fazê-lo quando estava a sós com Ukkor. O maior falava sobre suas palavras em expressões quando não saía da forma de raposa e, apesar do começo desajeitado, quanto mais os dois se apegavam àquela relação, mais iam se entendendo só com um olhar.

Olhar.

Os olhares que não se desviaram durante horas naquele palanque, na praça. Queria confortar Ukkor e mostrar que estava junto com ele. Mas naquele momento, ao lembrar disso, só se pegava pensando que queria voltar a olhá-lo.

— Você só me entendia porque era você. Era um inferno com Ralakas, ele sempre pegava minhas coisas, ou eu fazia algo que ele não tinha explicado direito, ou só eu não tinha entendido… quando nos encontramos momentaneamente na floresta, também foi horrível. Ele só percebeu que era eu pelas cicatrizes, tentou até algum tipo de diálogo comigo, achou que você estava morto por eu estar sozinho… e eu não conseguia dizer pra ele que não, que não era por isso.

Começou o discurso com certa convicção, porém, ao final, sua voz foi ficando amuada e de certa forma angustiada, assim como seu cenho, que se tornou triste e franzido com o olhar baixo. Suspirou e levantou o olhar para as costas do amigo, voltando ao trabalho que fazia

— Eu… devia ter ajudado muito mais. Você diz que eu sou mais humano que você, mas você me ensinou até então o que eu deveria ou não fazer, como fazer… Como existir. Então se eu sou mais humano que você, ao menos pra ti, é porque você me ensinou isso. O que a Porta fez foi só dar um empurrãozinho pra… bom, sair, de certa forma.

Em dado momento, Yoru se inclinou ao lado de forma esquisita para conseguir dar atenção ao que fazia. A mudança repentina de pose chamou atenção de Ukkor, que passou a olhá-lo de soslaio. Era estranho olhar para aquele rosto que quase sempre tinha a mesma expressão pois, ali, ele mudava, expressava. Parecia que ele se sentia seguro.

— Eu não acho que tenho capacidade de ensinar pra alguém esse tipo de coisa.

— Você não ensinou voluntariamente, eu acho… foi só acontecendo. Você foi o primeiro humanoide com quem convivi em muito tempo — franziu o cenho, aplicando um pouco mais de força onde esfregava, tentando tirar uma sujeira insistente — e como você é, obviamente, muito melhor do que as megeras, eu aprendi muito com você. No começo, pra mim, qualquer pessoa era ruim. Ponto. Por sua causa, agora sei que existem nuances, que preciso me ajustar aos locais, proteger quem temos apreço… entre outras coisas.

— E que porta é essa que você tanto fala? — Ukkor perguntava enquanto se virava e olhava para o amigo.

Yoru evitou o olhar do amigo e respirou fundo. Relaxou as mãos na banheira, ficando levemente curvado sobre ela; encarando a água agora suja com suas orelhas formando um ângulo de noventa graus junto a cabeça. Era um assunto complicado.

— Eu só sei falar como estou falando pelo contrato com as megeras. Tudo que eu queria era poder me comunicar, mas elas me deram um pouco mais e tiraram um pouco mais também… — Fechou os olhos e respirou fundo mais duas vezes antes de continuar, ainda com olhos fechados.

Eu não lembro de muita coisa, só que quando elas foram fazer os procedimentos, em algum momento, pela dor, eu desmaiei. Quando acordei eu estava em um local esquisito, todo branco. No meio dele tinha uma porta, não lembro muito dela além de ser muito grande com um olho fechado no meio. Mas, de repente, ele se abriu, e a Porta também. Não sei dizer o quê ou quantos estavam lá, mas pareciam vultos. Lá dentro, tudo era diferente, envolto em uma escuridão profunda. Eu via e não via. Uma voz esquisita saiu falando algo sobre troca equivalente e eu não lembro do que nós conversamos, só de sentir frio e ver que estavam pegando em mim, puxando para dentro da Porta. Senti arrancarem um de meus dentes caninos e acho que um pouco mais da boca. Uma dor tão grande quanto a que senti antes de desmaiar, mas era uma sensação esquisita, como se eu estivesse saindo do meu corpo. Então eu acordei no moinho de novo. Não sentia mais meus batimentos cardíacos, tinha um ferimento do lado do olho, estava com a boca rasgada, mas Meij — , digo, uma megera me ajudou a cicatrizar a ferida e eu ainda estava sem conseguir lembrar o motivo de ter dado uma boneca para elas. E também esqueci muitas coisas do meu passado, acontecimentos de antes de conhecer você.

O meio-orc sentia-se horrorizado de pensar tudo que o vulpino tivera que passar sozinho com as megeras. Sabia que ele havia morado lá, mas não sabia como ou o motivo. Sentia que o conhecia muito bem, mas que ainda assim haviam coisas que nem ele mesmo conseguiria compreender.

O mais novo abriu levemente os olhos, ainda de cabeça baixa, e fitou a água de novo. Era como se não se reconhecesse. Quem era Yoru? Quem foi Yoru?

— E tem coisas que eu lembro que fiz, mas não sei o porquê. Coisas que são terríveis, Ukkor. Terríveis mesmo. Depois que fugi delas eu tava com tanta raiva. Com ódio e rancor. Mas por quê? Por quem? Por que eu fiz tudo aquilo?!

Raiva, ódio, rancor. Esse era o combustível que movimentava Ukkor. Que o fizera matar seu tio. Que o fizera odiar seu pai que nunca conheceu. Que o fizera praguejar por Ralakas sumir. Que o fizera aceitar um contrato com um demônio para tentar achar seu mestre de caça. Ele e Yoru não eram tão diferentes assim.

O vulpino começava a se exaltar em ansiedade e medo, seus olhos se enchendo de lágrimas e a voz tremendo. Sentia medo de si mesmo e Ukkor compreendia aquela dor. O medo de não saber o que faria para si, ou pior; o que faria com os outros.

Quando os sentimentos do vulpino começaram a transbordar por seus olhos, o mais alto não parou para pensar. Virou-se para o rapaz que se perdia em um mar de angústia e o abraçou.

Quieto e zeloso e firme e forte e cochichando:

— Calma, Miku.

O vulpino deu um leve sobressalto e seus olhos se abriram de imediato. Sabia desde que fora adotado pela família vistani que abraços, toques e beijos eram demonstração de afeto; até tentava retribuí-los, mas não entendia quando ou porquê deveria fazê-lo. Entretanto, agora, conseguia entender e sentir a intenção por trás deles.

Com o abraço de Ukkor, apesar da surpresa inicial, seu rosto se tornou sereno. Retribuiu o ato desajeitadamente, repousando as mãos nas costas do maior e fazendo um leve carinho, fechando os olhos logo em seguida. Sentia um calor gostoso e uma sensação acolhedora.

Conseguia ouvir os batimentos cardíacos do mais velho. Dedilhava as costas dele e sentia como se o órgão vibrasse através de seus dedos, seguindo através das mãos, braços e indo até o próprio peito. Respirou fundo com algumas poucas lágrimas fugitivas ainda descendo pela face.

— Eu não sei como você faz isso. Desde aquela mansão, quando nos reencontramos e enfrentamos aquele monstro esquisito. Você me acalmou só com uma palavra. E eu sei que não é como Ivy fez com aquele cara, não é magia. Eu só… não entendo.

— Há sentimentos que não se explicam, só se sentem.

Respondeu por impulso. A vida de Ukkor era feita de impulsos e ele tinha se atirado em mais um; mas, dessa vez, movido por ternura, não raiva. O vulpino aninhou a testa no ombro do outro, sentindo a pele molhada e dando uma breve risada nasalada.

— Você me molhou, Ukkor — disse em um tom zombeteiro.

— Que bom que se molhou. Acho que é a sua vez, ou daqui a pouco minha pele deixa de ser cinzenta pra ficar branca como a neve — disse sorrindo.

O meio-orc se desvencilhou cuidadosamente do abraço. Não que não apreciasse o carinho ou o calor ou a maciez da pele do outro. Pelo contrário, aquilo chegava a alfinetar os dedos de Ukkor. Nunca teve uma vida muito regrada e sempre fora um tanto solitário. Muitas vezes por medo de ferir as pessoas próximas.

Normalmente não se apegava demais a ninguém, pois isso o ajudava a seguir em frente. Não ter para onde — ou para quem — voltar sempre era útil quando se caça monstros. Esse estilo de vida costuma ser efêmero.

Mas ali estavam os alfinetes, prendendo-o a Yoru.

Levantou-se, deixando a água escorrer pelo corpo nu enquanto se alongava. Colocou os pés para fora da banheira e retirou a água suja, começando a preparar um banho limpo para o vulpino.

Do outro lado do banheiro, Yoru tirava as roupas imundas com um meio sorriso no rosto. Ele realmente precisava daquele banho e parecia que o momento de pânico nunca havia existido.

Caminhou até a banheira coçando as orelhas. Além das cicatrizes nas costas, o corpo de Yoru era coberto de diversas outras; maiores e menores. Uma delas, bem no centro do tórax, parecia muito recente. O mais curioso era uma marca, como se feita por ferro quente, no lado direito de seu peito. Uma espécie de dragão serpentino devorando o próprio rabo.

Apesar de estar acostumado a ver Ukkor nu, Yoru não estava habituado a isso na frente de pessoas e em sua forma humana. Era a segunda vez que isso acontecia e seu rosto enrubesceu, fazendo-o desviar os olhos do outro.

Não ajudou o fato de que Ukkor se demorou mais do que percebeu olhando o corpo do vulpino. Tardou a notar o rubor em Yoru, mas deu de ombros. Algumas pessoas tinham vergonha da nudez, não que ele se importara com isso algum dia.

Yoru praticamente ronronou ao entrar na banheira, sentindo seus músculos relaxarem na água quente. Afundou até que seu queixo encostasse na água cristalina, e então repousou a nuca na borda da banheira.

— Isso é bom… — Soltou um som de aprovação em meio a fala baixa, fechando os olhos.

Ajoelhado ao lado da banheira, Ukkor levou as mãos ao pescoço do vulpino. Suas mãos, grandes e calejadas, eram um contraste gritante com a pele clara e macia do menor onde as cicatrizes não a macularam. Apertou a região mole entre os ombros e o pescoço e a massageou por uns instantes. Apesar de não ser a pessoa mais delicada que existe, tinha aprendido que a tensão costumava morar nesta região.

O toque, apesar de óbvio, trouxe uma pequena surpresa a Yoru. Ainda não estava muito acostumado com eles, mas logo relaxou, soltando um longo suspiro, aproveitando o momento.

Passaram alguns minutos assim, sob um silêncio confortável até Yoru voltar a encostar completamente a nuca na banheira e abrir os olhos. Fitou o mais velho de cabeça pra baixo, dando um sorriso de lado.

— As pessoas ficam engraçadas de cabeça pra baixo — comentou simples, dizendo o que vinha a mente sem muito freio, já que ainda estava aprendendo sobre a própria psique. — Mas você continua bonito, o que é mais engraçado ainda.

Fechou os olhos dando uma risada baixa, voltando a olhá-lo.

— Curioso. Por que você permaneceu me olhando por tanto tempo? — Ukkor pensava em como explicar porquê ficara olhando o vulpino nu por tanto tempo, mas então Yoru continuou. — Na praça, digo. Afinal era mais fácil você só relaxar a cabeça pra não machucar seu pescoço?

— Eu fiquei te encarando porque era o único jeito de resistir. Te olhar me lembrava que eu tinha que aguentar todo aquele circo, sem arrebentar aqueles cadeados, pra que não arrumasse mais problemas pros outros — parou de falar um tempo, escolhendo as palavras antes de concluir. — É como eu te disse quando Ivy me soltou: se você tivesse no meu lugar, eu teria destruído até mesmo a praça se fosse preciso. Ficar te olhando me manteve no chão.

O maior virou o amigo na banheira, mergulhando-o gentilmente na água. Seu cabelo estava imundo e, as orelhas, uma lástima. Quando Yoru emergiu novamente, o meio-orc passou algum tempo vertendo água sobre as madeixas pretas e esfregando suas orelhas.

Era uma anatomia diferente e, vez ou outra, tentou prender o cabelo do vulpino atrás da orelha, até lembrar que ele não tinha um par como a maioria das pessoas. Quando se deu por satisfeito com a limpeza delas, ficou as afagando devagar.

Por um momento, parecia que o mundo lá fora não existia. Nada de Strahd ou megeras, Vanya ou Ivy; só os dois em silêncio com som da água e o meio-orc massageando as madeixas do vulpino. Por um momento, a mente deste ficou em branco, o que era surpreendente dado o turbilhão de informações que sua psiqué ingeriu. Mas se manteve assim, sereno e de olhos fechados.

Lembrou-se do sorriso do mais velho ainda há pouco. Era um sorriso cativante e uma risada gostosa de ouvir. Não era uma surpresa vê-lo sempre arrancando suspiros ou conseguindo uma companhia de forma fácil. Inclusive era algo que, agora, o intrigava. Como as relações assim aconteciam?

— Você me mantém no chão.

A voz grave de Ukkor arrancou o menor de seus devaneios. Abriu os olhos assim que ele falou, os olhares se encontrando de imediato. Se estivesse com seu coração, sentiria ele acelerando. Deu uma engolida em seco, tentando raciocinar aquela informação.

— Você me mantém humano.

Não tinha outra resposta além daquela, não depois do calor que sentiu no peito. Inclinou a cabeça até a mão que afagava suas orelhas, porém, sem quebrar o contato visual. E lá estavam os alfinetes novamente. Ukkor podia sentir os dedos se prendendo ao rosto do vulpino, a boca ficando seca. Praguejou internamente sem mudar sua expressão, o meio-orc se conhecia o suficiente pra saber o que queria, mas se Yoru percebia, não transparecia.

Com delicadeza, limpou a bochecha do vulpino com o polegar e desviou o olhar em seguida, buscando um lenço ou qualquer outro pano relativamente pequeno. Yoru notou as marcas nos pulsos e pescoço dele, fruto dos eventos na praça mais cedo.

— Ah — levantou-se e saiu da posição que estava.

Colocou-se quase sobre Ukkor, tateando sobre o pescoço e num dos pulsos. Os olhares voltaram a se cruzar e Yoru fechou os próprios pouco depois. Ele parecia calmo e concentrado. Uma leve luz esmeralda começou a emanar do rapaz e, logo, a imagem de uma pequena raposa esverdeada saltou de seu peito.

O pequeno espírito rondou Ukkor, soltando alguns sons de “yiip”. Em seguida, o próprio meio-orc passou a reluzir em um tom verde, especialmente nas áreas que foram machucadas anteriormente. Pouco mais de um minuto passou até que a luz diminuiu e a raposa saltou de volta no peito de Yoru, que abrindo os olhos, deu uma olhada nas regiões maculadas que, agora, estavam menos escoriadas.

— Acho que está um pouco melhor, mas precisamos cuidar disso depois. Isso vai ajudar a cicatrizar melhor, ao menos por enquanto — disse analítico, mas com um tom doce.

— Eu queria que a magia que vaza de mim fosse assim; calma e serene. Não uma miríade de explosões selvagens e esquisitas.

— Magia pode ser de várias formas, é só aprender a controlar. E isso leva tempo — comentou se virando e voltando a mergulhar na banheira.

Um curto silêncio se fez entre eles antes que Ukkor voltasse a virá-lo de costas.

— Vira pra eu prender seu cabelo.

Juntou os fios com cautela e os puxou com firmeza, prendendo-os com um tecido. Não queria que os cabelos recém lavados tocassem a água que ficava, aos poucos, suja.

O coração de Ukkor brigava para abrir caminho entre as costelas, mas ele era teimoso o suficiente para manter aquela sensação trancada. Além do martelar no peito, sempre que piscava lembrava dos olhos ocres o encarando. Yoru, por outro lado, se perguntava o que era o sentimento latente que podia ver brotar nos olhos do maior.

— Acho que temos que nos manter próximos então, se não eu perco o chão e saio voando por aí e você vira bicho pra sempre. O que seria uma pena, já que você é tão bonito.

Porcaria de língua que falava mais rápido do que podia pensar.

— Eu não acho que sou bonito como você diz, mas obrigado. É a primeira vez que ouço isso, na verdade. E logo de ti, a quem eu confio a minha vida, então deve ser verdade — deu de ombros pensando o quão achava Ukkor infinitamente mais bonito que ele enquanto as palavras só saíam de seus lábios sem pensar muito. — Apesar de que seria interessante te ver voando, eu não conseguiria voar ao teu lado. Então prefiro andar mesmo. É melhor ficarmos juntos então, não sei se conseguiria viver como raposa novamente.

Sua sinceridade era tão inocente que nem parecia que tinha feito um contrato para tirá-la de si. Mas esse era o “efeito Ukkor”. Sentia que tinha um coração, tornava-se ingênuo novamente, seus instintos afloravam.

O mais velho continuou a ajudar no banho, deixando um dedo correr sobre uma das cicatrizes num misto de curiosidade e aflição de pensar o que a causara. A primeira que Yoru adquiriu após fugir do moinho.

— De onde veio essa cicatriz aqui — a pergunta, baixa, escapou dos lábios do meio-orc.

Yoru abriu os olhos entristecidos e abaixou a cabeça, olhando além da água. Era algo doloroso e complicado.

— Lembra que falei sobre algo muito ruim que fiz e não lembro o porquê? Foi nesse dia. Logo depois que fugi delas. É muito confuso e eu só lembro de estar lutando contra uma pessoa e então… a Lua surgiu.

Perdeu-se nos próprios pensamentos após isso. Tentava organizá-los e lembrar um pouco mais, mas não conseguia, o pouco que tinha falado já era doloroso demais. Haviam várias coisas que ele não entendia, em especial o motivo de Ukkor fazê-lo sentir tremores no corpo, a boca secar e não conseguir desviar o olhar.

Na cabeça do meio-orc, ele apenas pensava que Yoru merecia alguém melhor que ele. Outra pessoa para que ele confiasse a vida. Terminou de ajudar com o banho sem dizer mais nada, apenas cantarolando baixinho com sua voz grave; Eram muitas sensações novas fluindo por Yoru, muitos sentimentos. Alguns bons, outros ruins; uns frutos da mente recém desperta, outras vindas de Ukkor.

Logo, ouviram batidas afoitas na porta com um aviso de urgência e tiveram que se apressar a sair. Por hora, Yoru não iria pensar sobre as coisas que aconteceram ou o que sentia. Contudo guardaria toda aquela conversa em sua memória, preenchendo o espaço onde antes havia seu coração. No futuro, esperava que pudesse destrinchar as tangentes dos sentimentos que surgiram naquele lavabo.

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