Linhas Tortas

Alexis ~ Myo
7 min readNov 27, 2024

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Um jovem lefou se encontrava levemente inebriado em uma taverna qualquer da cidade de Valkaria. Tinha terminado sua última missão junto de outres tripulantes – um ofício de saque e libertação de pessoas escravizadas por puristas escondidos na cidade, o rotineiro. Como fazia no fim desses serviços, o até então mestre de armas Meemon Sashark se vertia a qualquer lugar mais movimentado, a fim de um entorpecimento rápido e um descanso prolongado. Mas dessa vez era diferente, estava no local para assistir uma grande amizade se apresentar.

Ume meio-elfe se aproximou da mesa onde o marujo de pele oliva bebia sozinho. Os cabelos curtos e ruivos delu eram tão chamativos que fizeram o tricórnio de Meemon quase cair quando moveu a cabeça para olhar aquelu que se aproximava, fazendo-o abrir um sorriso malandro de dentes serrilhados ao perceber de quem se tratava.

— Ora ora, o cavalheiro está solitário esta noite? Sou tão especial assim que o terei só p’ra mim? — O tom ironicamente galanteador se fazia presente, com os olhos verdes tão límpidos e ferinos percorrendo todo o corpo do bucaneiro de cabelos escuros, apenas para provocar.

— Pelos Deuses Tali, sente de uma vez. — Meemon respondeu com um riso frouxo e sacana.

Elu assim o fez, puxou uma cadeira para o lado do tocado pela Tormenta e depositou seu alaúde na mesa, com cuidado. O rosto claro de traços finos era contrastado por uma marca de nascença levemente mais escura perpassando suas bochechas horizontalmente, parecendo ramos de árvores. Elu mirava o semblante do Sashark, que permanecia de olhar baixo. Quem visse de fora, acharia que ê ruive estava o secando, mas o mestre de armas sabia muito bem que elu estava, na verdade, analisando-o antes de falar.

— Desembucha, o que aconteceu?

— Nada. — Respondeu rápido, automático. Logo, suspirou e mexeu devagar a caneca quase vazia sem muito interesse. — Driladan, nossa contramestre, morreu nesta missão. Já fizemos o funeral, e nem é isso que de fato ‘tá me incomodando. Ela se foi fazendo o que queria e foi rápido, que é o mais importante. É só... — Suspirou, tirando o tricórnio e pendendo a cabeça para trás, olhando momentaneamente para o teto. Estava sujo. — Isso significa que alguém terá que ser nomeade contramestre quando retornarmos p’ra Venetia. E... Sinto que serei eu.

Os olhos verdes não desviaram do rosto daquele que se recusava encarar de volta, mantendo uma expressão analítica.

— E daí? — Perguntou com tom de desinteresse, mas Meemon sabia que era só teatro. — Não é este o curso natural de tode pirata? Crescer na tripulação?

E daí… — Continuou mais enfático, como se estivesse impaciente. Também teatro. — …que eu não acredito que deveria ser eu. Não quero ser capitão um dia, e tenho medo de que eu acabe recorrendo a caminhos “fáceis” quando entrar em desespero. Como… Chamar por Ele novamente.

Tali se ajeitou no assento, cruzando os braços e semicerrando os olhos. Parecia preocupade e, ao mesmo tempo, incisive.

— Hm. — Dignou-se apenas a isto por um momento, pensative. — Acho bizarro como ‘cê se julga tão fraco assim.

— Eu não disse isso!

— Mas foi o que interpretei. Melhore suas palavras, ué.

O marujo grunhiu, finalmente olhando ê barde à sua frente, dessa vez com certa irritação genuína no rosto.

— Eu só… Não sinto que deva ficar no comando da vida de outras pessoas. Eu não consigo tomar conta da minha direito. — Riu sem graça, voltando a olhar para o líquido amarelado em sua caneca. — E também não acho que eu mereça ser contramestre, tem gente muito mais competente no navio, com toda certeza.

— ‘Cê sabe que não será por isso que ‘cê seria nomeado, não é?

— Eu sei. Mas…

Um suspiro alto pôde ser ouvido e, então, silêncio – entre elus, claro. A taverna estava bem cheia e barulhenta. Permaneceram assim por algum tempo, quiçá dois minutos inteiros, enquanto ambas as mentes maquinavam sobre o que falar.

— Sinto que você, até hoje, não aprendeu muito sobre si, mesmo depois de tudo. Eu já ouvi muito sobre várias de suas aventuras, e se tem alguém que não recorre ao “fácil”, é você.

— Já ouviu tanto que vive mentindo sobre elas.

— Esse não é o ponto. — Tali o interrompeu, sabendo bem que ele estava tentando desviar do assunto. — Sinceramente, não acredito que ‘cê conseguiria fazer isto. Nem que seja p’ra salvar outras pessoas. ‘Cê não mexe com a liberdade de ninguém.

E mais silêncio. Nenhuma resposta. Ê barde suspirou.

— Olha, depois de tudo que ‘cê viveu, me contou… Nem se ‘cê amasse alguém, seria capaz de salvá-la usando Ele por puro egoísmo.

— “Se você amasse alguém”... Essa doeu, Tali. — Brincou, como sempre fazia quando estava nervoso.

— Você entendeu. — Revirou os olhos. — Mesmo… Mesmo quando ‘cê negou o Céu Azul que eu compus, era para fugir de si mesmo. Hoje, nunca te senti tão centrado em si mesmo.

O Sashark respirava fundo, como se estivesse com dificuldade de fazê-lo. Tomou um grande gole da cerveja, depositando o utensílio, agora vazio, sobre a mesa.

— “Não rasga a pele, fere o coração…” — Cantarolou baixo, instintivamente, o que fez ê artista dar um sorriso gentil.

— E hoje… Vou te mostrar porque você consegue. — O sorriso aumentou, fazendo com que o mestre de armas ê encarasse.

— Ah não. Nova música?! Não vai me dizer que é sobre aquele maldito sapo. — Reclamou olhando o rosto delu completamente derrotado, sabendo que era inútil contestar, fazendo ê amigue rir.

— Não, não. Esta não é sobre outra aventura, acredite. ‘Cê vai entender.

O pirata suspirou, revirando os olhos enquanto o sorriso de Tali só aumentava ainda mais. Elu levantou-se graciosamente, pegando o próprio alaúde e buscando a caneca do amigo com a mão livre.

— Bom, chegou a minha vez de animar este lugar, ‘tá na hora desse pessoal conhecer música boa de verdade. Deseje-me sorte. — E piscou para Meemon, saindo de perto.

Ele observou ê pequene meio-elfe ir até o balcão, entregar a caneca para a barista e falar algo antes de se guiar para o palco com algumes artistas pegando seus próprios instrumentos.

— Senhoras, senhorus e senhores, vocês já são o público mais lindo que pisou nessa terra! Irei animá-les nesta noite fria com músicas de minha autoria, incluindo uma nova! Lembrem-se de jogar um tibar, se puderem. Se gostarem do espetáculo, meu nome é Tali Artrano, e se odiarem, sou Meemon Sashark.

Tali piscou para ele. O público riu e algumas pessoas olharam rapidamente na direção do mestre de armas, que revirou os olhos mais uma vez e soltou um breve riso nasal enquanto balançava levemente a cabeça em negação. Era sempre essa ladainha.

Então, o show começou. Algumas músicas o marujo largado na mesa solitária já conhecia, por serem criações sobre sua vida e aventuras que ele havia compartilhado com ê compositore. Algumas delas o público murmurava junto ou até mesmo cantavam algumas partes, o que o deixava levemente incomodado. As pessoas não sabiam que estavam cantando sobre ele – ou alguma versão distorcida dos fatos, claro.

Depois de umas duas canções, um garçom levou uma caneca cheia de cerveja até Meemon, murmurando algo como “presente dê barde” e saindo antes que ele pudesse agradecer. A casa estava ainda mais cheia depois de algumas músicas.

O mestre de armas também cantarolava vez ou outra, por impulso. Tali havia enchido o saco dele enquanto as criava, vagando por Arton junto com ele. “Eu só estou indo encontrar Gerard”, “‘cê acredita que ele me chutou p’ra fora de novo?”, “eu preciso de inspirações melhores, ele nunca me conta muito, você é sempre cheio de detalhes!” eram as desculpas mais famosas que elu dava para que pudessem caminhar juntes por aí. Porém, depois de anos de encontros e desencontros, sabia que eram só meios de se aventurar com outra companhia que apreciava – Tali era uma alma livre.

Depois de várias canções, elu voltou a falar. Comentou que estavam chegando ao final da apresentação, pediu novamente por alguns tibares – que por sinal se amontoavam naquele pequeno palco – e anunciou que iria tocar a música nova. O Sashark, quase no final da caneca, já não prestava muita atenção no que se passava em seu entorno, completamente absorto em pensamentos. Tali, por outro lado, fitava o marujo esparramado na cadeira e, com um sorriso malandro, começou a dedilhar seu alaúde.

Hoje eu acordei com pavor de olhar no espelho e não ver

Tudo que eu quis pra mim e que não posso ser

Hoje me senti tão normal, ordinariamente clichê

Mas do que isso importa, é só uma linha torta, ainda dá pra ler

O marujo arrepiou-se da cabeça aos pés, virando o olhar para o palco e encontrando os verdes, tão claros que se confundiam com o branco da esclera naquela distância. Elu, com o sorriso se alargando, continuou.

Hoje eu levantei devagar, vou andar com pressa pra quê?

O tempo passou pra mim e vai passar pra você

Nunca canso de perguntar como o fim do livro vai ser

Mas o que faço com as respostas, todas são tortas, tem que esperar pra ler

Meemon sentiu seu coração acelerar, era uma história sua. Pessoal. Com a Tormenta.

A gente quer que os medos sumam de uma vez só

Mas acontece que eles rumam para onde a coragem já se reduziu a pó

Ê barde se manteve cantando aquela última estrofe por algum tempo, repetindo-a pelo menos outras cinco vezes. Era como se quisesse gravar o trecho na cabeça do público, mas seguia voltade para o marujo, sem desviar o olhar. Queria gravar a mensagem na cabeça dele.

A melodia então se tornou um pouco mais lenta, tal qual o início. Como um suspiro, Tali finalizou a canção.

Hoje o tempo passou pra mim

Nunca vai parar de passar

Dia, mês e ano

Eu sou só humano

E humano eu vou ficar

Ao fim dos versos, Meemon compreendeu. Não importava quanto tempo passasse, ele seria apenas ele mesmo, não interessava o que viesse, ou o que, ou quem, tentasse transformá-lo. Era dono de si próprio e de suas escolhas, e era nisso que deveria focar.

Revisão e edição por Diogo Stone

Músicas citadas:

1. Céu Azul — Jaloo, Mc Tha

2. Linhas Tortas — Bruma [com pequenas modificações]

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Alexis ~ Myo
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Written by Alexis ~ Myo

Trans não-binárie tentando escrever um pouco. Geralmente me encontro em @alexismyo.bsky.social (Bluesky) (o/ele/-o | ê/elu/-e)

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