Bomba-Relógio

Alexis ~ Myo
8 min readDec 17, 2024

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Tenebra jogava seu manto sobre Arton. O céu, pintado de estrelas, era admirado por dois jovens. Um, aproveitando a vista natural que inundava a noite com sua luz cálida; o outro, sentindo a brisa leve que chacoalhava as árvores enquanto brincava com um tibar entre os dedos. Encararia o céu noturno também, se não fosse a pesada faixa preta que vestia o tempo todo e cobria a região dos olhos — mas talvez estivesse observando mesmo assim.

— Hora de preparar a fogueira. Você vem comigo, Micah? — O que observava as estrelas disse enquanto se levantava e batia a sujeira das calças.

O qareen, no entanto, não se mexeu. Continuou deitado, com o rosto virado para o céu e girando o tibar em seus dedos com maestria. Meemon Sashark, o lefou pirata que antes observava o céu, deu de ombros, indo até a pilha de lenha que coletaram enquanto procuravam aquela clareira tranquila onde descansavam.

Passaram alguns minutos assim, em silêncio. Micah finalmente se sentou em meio a grama, fazendo o contramestre observar os movimentos vagarosos. Há pouco mais de quatro meses, ele estava preso em um porão escuro e fazendo tudo com pressa — comer, dormir, trabalhar contra vontade. Agora, sem mais amarras ao purista que o havia comprado quando mal sabia falar, não fazia nada rápido; a menos que fosse extremamente necessário, como fugir, por algum motivo.

O pirata parou tudo que fazia para ir até ele e oferecer a mão para ajudá-lo a se levantar, que foi aceita de bom grado, com um sorriso malandro de lado aparecendo no rosto do vendado.

— Tão cavalheiro, Meemon. — O tom levemente sarcástico pôde ser ouvido.

— Me erra, Micah. — A resposta veio tão atrevida quanto, mas acompanhada de uma risada suave.

Ambos começaram a arrumar o acampamento, cada um fazendo sua parte. Meemon continuou a fazer a fogueira, enquanto sua companhia preparava a barraca que haviam comprado há pouco tempo. Por mais que o marujo gostasse de repousar no saco de dormir, observando as estrelas e a natureza até cair no sono, Micah argumentava que já dormira muito ao relento. Se pudesse se dar ao luxo de ter ao menos uma barraca sobre a cabeça, ele o faria. E como um bom parceiro, o pirata de pele oliva apenas concordava. Não iria tirar isso dele.

Meemon gostava de observá-lo fazendo coisas cotidianas, como ficar confuso ao tentar montar a barraca onde iriam descansar. Propositalmente demorava a criar o fogo, para que pudesse ter mais tempo para admirar o outro. Sabia que eram desculpas esfarrapadas e que Micah podia vê-lo, apesar de não ter ideia de como. O qareen vestia aquela faixa sobre os olhos desde que o conheceu, mas “talvez fosse coisa de qareen”, pensava. Também não questionava, não queria forçá-lo a nada.

— Apreciando a vista? — Micah despertou Meemon de seu transe.

Oh. — Começou, como um suspiro. — Você é tão linda — , lindo. Fica difícil de me concentrar.

— Você sabe que não faz mal me chamar de linda, pode falar como preferir, não faz diferença. — A resposta veio cordial, acompanhada de um sorriso gentil.

Micah tinha a pele mais clara, com sua tatuagem e cicatrizes escondidas pela roupa preta e branca que vestia. Os cabelos de tamanho médio, castanhos e com algumas mechas arroxeadas permaneciam soltos, adornando um rosto oval. Era uma linda paisagem, e Meemon adorava admirá-la sempre que possível.

O bucaneiro voltou ao que fazia, terminando de ajeitar a fogueira e a acendendo pouco depois. Sentou-se em frente às chamas, observando a dança do calor avermelhado que produziu enquanto sua companhia finalizava seus afazeres. Logo, o qareen andou lentamente até ele, quase imitando o balançar do fogo, e sentou logo atrás de Meemon, abraçando seu corpo e o fazendo se recostar em seu tronco, ficando parcialmente deitado.

Ficaram assim por um breve momento, apenas observando a fogueira em meio a uma carícia silenciosa. Micah fazia um singelo afago nos fios pretos do pirata, que tinha as tranças curtas que pendiam à frente das orelhas sendo desfeitas bem devagar. O marujo, por sua vez, acariciava as costas da mão que o abraçava, ainda sem parar de fitar as chamas, como se estivesse hipnotizado.

— Aonde vamos mesmo? — O qareen rasgou o silêncio com um tom levemente entediado, ele já sabia a resposta.

— Nova Malpetrim. — Respondeu no automático, como quem já passara por aquilo várias vezes. — Eu sei que você está apreensiva em entrar no navio, porém vai dar tudo certo.

— Venetia vai me odiar, Meemon. — Um tom manhoso se fazia presente.

— Você muito provavelmente vai cair no mar da primeira vez, normal. Sei que ainda tem dificuldade de nadar, mas eu vou estar por perto pra te salvar, além de que o resto da tripulação também já está acostumade com isso.

Um grunhido frustrado soou atrás do pirata, o que o fez dar uma risada baixa com a reação. Venetia era o navio dos Sashark, comandado pela Capitã Scylla Sashark, uma sereia de pele azulada e cabelos loiros.

A embarcação em si parecia comum e com uma sereia segurando um tritão estampado em suas velas. Mas ele tinha uma maldição. O navio parecia um ser vivo, com vontades próprias e sentimentos tão reais quanto poderia ter. Expulsava pessoas quando bem entendia, mudava de direção quando quisesse, e tinha escolhido a capitã, não o contrário. Quase ninguém conseguia subir a bordo na primeira tentativa, poucas pessoas conseguiram o feito de entrar sem problemas desde o começo. Meemon entendia bem o medo que acreditava que o amante estava sentindo, porém, precisava criar coragem, caso quisesse seguir nessa vida junto a ele.

— Eu já terminei minha última missão, Micah. Já tem tempo que ‘tô em terra firme, não aguento mais. — Continuou quando não escutou uma resposta. — Pode tirar meu tapa-olho também, por favor?

O qareen deu um longo suspiro, levando as mãos até o nó atrás da cabeça do marujo e o desatou sem pressa, deixando o pedaço de pano cair perto do tricórnio que estava repousando na grama próximo a eles. O Sashark piscou algumas vezes, acostumando os olhos com a luz fraca e voltando a encostar a nuca no tronco do outro. Os toques em seus cabelos retornaram, assim como o abraço com apenas uma das mãos, sentindo o corpo relaxar por um momento.

— Não aguenta mais a terra firme comigo? — A pergunta veio provocante e baixa, quase como um sussurro.

O vendado percebeu a pele oliva se arrepiando com o que disse, abrindo um leve sorriso vitorioso. Apesar de saber que seria retrucado.

— Você sabe que não se trata disso… Você diria p’ra um peixe voar?

— Nadadeiras podem se tornar asas…

— Você diria p’ra um devoto de Valkaria ficar apenas em uma cidade?

— Olha só, então o ateuzinho agora vai dar a cartada da religião?

Meemon revirou os olhos, o corpo tensionado por cima do outro que levava a mão das mechas pretas para o ombro, fazendo uma massagem leve e desajeitada.

— Vamos, querido… Não seja teimoso. Vem cá, eu posso te relaxar.

Eu que estou sendo teimoso?

O pirata se sentou novamente, deixando de se encostar no corpo do qareen, que tinha o sorriso se desfazendo aos poucos. Outro longo suspiro pôde ser ouvido enquanto ele se levantava, ficando em frente ao fogo e ao lado de Meemon.

— Eu só não vejo porquê você quer voltar pra lá, já que só te mandam pra missões tão perigosas.

— Eu sou um contramestre, Micah. É basicamente meu papel.

— Um que você nunca quis desempenhar.

Quem suspirou agora foi Meemon, pendendo a cabeça para trás e encarando as estrelas, apoiando-se nas mãos um pouco atrás de seu corpo. Ficou distraído por cerca de três minutos e só percebeu Micah se aninhando nele quando o outro já estava com a cabeça na curva de seu pescoço.

— Eu só não aguento mais ver você comprando bombas porque “aquele pode ser seu último dia”. — O resmungo manhoso foi baixo, como uma confissão que só ele deveria ouvir.

— E qual arma você acha que eu seria?

Depois de um silêncio curto e ensurdecedor, a resposta veio.

— Uma poção de bola de fogo.

— São basicamente a mesma coisa, Micah. — Retrucou com uma risada baixa.

— Uma é mais cara, sofisticada, precisa de muita experiência e magia. A outra… É só uma bomba.

— Ambas precisam de tempo pra funcionar.

— Tal qual seu coração precisa ser aceso da maneira certa pra explodir todos os sentimentos que tem aí. Só que uma… Faz mais jus a você.

Meemon demorou a voltar a falar. Ainda encarava as estrelas, como se elas escondessem a resposta que procurava. Não era a primeira vez que ouvia algo parecido com aquilo, sempre que perguntava sobre que arma seria, diziam alguma explosiva — geralmente uma bomba. Seu coração permanecia no ritmo habitual, como sempre estivera durante vinte e sete anos de sua vida. Talvez fosse uma bomba defeituosa, que nunca explodiria; ou só provocaria a própria morte.

— Eu não vou gastar pelo menos 270 tibares na próxima missão de vida ou morte. É muito dinheiro p’ra uma tradição.

— Você quem perguntou. E quem criou essa tradição foi você. — O qareen deu de ombros, brincava de desabotoar e abotoar novamente os botões da camisa branca que o marujo usava. — Mas… Que tal não termos mais missões mortais assim?

O suspiro ruidoso de Meemon se tornou um grunhido baixo. Aquela discussão nunca terminaria e, infelizmente, não era o primeiro amante com quem discutia sobre isso. A maioria de seus relacionamentos não vingou pela divergência de como queriam seguir a vida.

— Micah… A gente não vai chegar a lugar algum assim. É melhor irmos descansar e discutirmos sobre isso amanhã.

— É sempre amanhã… Às vezes você parece tão só, como uma pequena igreja branca no meio do deserto a ser queimada. É solitária, mas chama atenção. E eu… Sou uma versão ainda mais sozinha de você, só que eu não sei o que fiz de errado.

O qareen soltou um muxoxo e começou a se levantar, como sempre, bem devagar. Andou até a barraca, e se virou lentamente para Meemon. O sorriso leve e malandro permeando a face mais clara.

— Bom, se quiser não descansar comigo, estarei aqui. — Disse entrando no abrigo.

O pirata ficou olhando o tecido fechado por um tempo, até voltar sua atenção para as chamas e cutucando os troncos com um graveto. Sabia que relacionamentos exigiam sacrifícios, mas havia alguns que não estava disposto a fazer.

Principalmente por não sentir aquele comichão pessoal que chamam de amor carnal. Nunca havia sentido isso por alguém, em toda sua vida. E, apesar de tudo, com certeza não sentia por Micah. Contudo, lá estava ele, brincando de casal com o qareen que nunca tivera alguma relação com outra pessoa, especialmente uma que fosse saudável.

Mas algo que ele havia dito acabou mexendo com Meemon mais do que ele gostaria. “Uma igreja no meio do deserto a ser queimada”. Era irônico, considerando que o marujo não se interessava por nenhuma religião. Um sorriso de lado e meio sarcástico nasceu em seus lábios ao refletir sobre isso. Realmente, talvez fosse bom ficar ao lado de alguém por mais tempo… Quem sabe o amor precisaria de tempo para florescer.

Amor.

Talvez Meemon fosse a bomba — ou a poção de bola de fogo, como preferir — e Micah fosse o relógio, contando os segundos para explodir todos aqueles sentimentos comprimidos no coração do marujo.

Com um suspiro, levantou-se para se espreguiçar e preparar as coisas para se juntar ao qareen. Quem sabe, dividir os lençois com ele o ajudasse a ponderar sobre tudo aquilo. Se deveria ficar mais tempo em terra firme ou voltar para o mar. Já se passaram tantos meses, por que não mais alguns? Quiçá pudesse convencer o amante a subir na embarcação, ou, talvez, acabaria cedendo aos desejos dele e acabariam criando algum tipo de negócio para poderem levar a vida no continente.

Em meio ao seu sonhar acordado, com um sorriso platônico e as arrumações que realizava, de repente, seu corpo retesou. Sentiu um arrepio ácido, um gosto grave, um cheiro amargo; coisas que não sentia há muito tempo. O cheiro vinha da barraca.

Mesmo sem ouvir nada, sabia que Micah estava conversando com Aharadak.

Revisão e edição por Diogo Stone

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Alexis ~ Myo
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Written by Alexis ~ Myo

Trans não-binárie tentando escrever um pouco. Geralmente me encontro em @alexismyo.bsky.social (Bluesky) (o/ele/-o | ê/elu/-e)

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